Texto: Marina Chioca Anater
Secretaria Municipal da Comunicação Social (Secom)
No século 19, quando Curitiba ainda era modesta e pouco urbanizada e o Brasil vivia sob um regime escravagista, a presença dos irmãos engenheiros André e Antônio Rebouças, homens negros livres, foi determinante para o desenvolvimento da cidade rumo à metrópole que conhecemos hoje. O trabalho dos irmãos representou muito para Curitiba e eles foram homenageados dando nome a um bairro, o Rebouças, e também uma rua, a Engenheiros Rebouças.
Os irmãos são protagonistas de uma campanha de marketing realizada pela Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura de Curitiba, em novembro deste ano. Em alusão ao mês da Consciência Negra, a cidade recebeu painéis temáticos e aplicação de cartazes em mobiliário urbano sobre o legado dos Rebouças. Você também pode conferir mais informações na página web CLIQUE AQUI
“Falar dos irmãos Rebouças é apresentar o quanto a população negra contribuiu para a construção de Curitiba. Eles foram engenheiros brilhantes e deixaram legados extremamente relevantes. Quando contamos suas histórias, damos visibilidade ao trabalho e talento de pessoas negras que fizeram e fazem parte do nosso desenvolvimento. É um reconhecimento que precisamos fortalecer sempre”, destaca a secretária municipal da Mulher e Igualdade Racial, Marli Teixeira.
André (1838-1898) e Antônio Rebouças (1839-1874) foram dois dos mais importantes engenheiros da época no Brasil. Eles eram filhos de um advogado autodidata, intitulado por Dom Pedro I como Cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, e de uma mulher escravizada alforriada. Transformaram o país com ideias e projetos inovadores em obras viárias e portuárias, além de atuarem no movimento pelo fim da escravidão.
Baianos de nascimento, formaram-se em engenharia pela Escola Militar, no Rio de Janeiro, onde vivenciaram uma capital que se modernizava com a urgência imposta pela presença da família real, que também influenciou suas trajetórias. No início da década de 1860, uma viagem de quase dois anos à Europa foi fundamental para ampliar seus conhecimentos e visão de mundo.
Legado no Paraná
Durante o período na Europa, os irmãos se especializaram, e, ao retornarem, Antônio foi nomeado inspetor das obras das fortificações de Santos (SP), Governador Celso Ramos (SC) e Paranaguá (PR), três portos estratégicos da época. Seu desempenho levou o imperador a escolhê-lo para chefiar as obras da Estrada da Graciosa de Antonina e Curitiba na Província do Paraná. A Estrada da Graciosa foi, até meados do século 20, a única totalmente pavimentada no Paraná. Ela impulsionou a economia regional e garantiu maior integração territorial.
O projeto mais arrojado dos Rebouças começou no início da década seguinte. Em 1871, receberam autorização para construir o Caminho de Ferro de Antonina a Curitiba, um divisor de águas para a industrialização da capital, facilitando o escoamento e a exportação da erva-mate e, mais tarde, da madeira. A ferrovia foi idealizada por André a partir de estudos conduzidos por Antônio, que morreu antes de sua conclusão. A obra seria finalizada apenas em 1885.
Até hoje, a linha ferroviária é utilizada para o transporte de cargas rumo ao Porto de Paranaguá e também se tornou um importante atrativo turístico, com a famosa viagem de trem pela Serra do Mar.
Por Curitiba
Foi Antônio quem transformou a realidade de muitos curitibanos em 1850 ao enfrentar um dos principais desafios da cidade, o acesso à água de qualidade. Até então, a população dependia de se deslocar até bicas ou olhos d’água, pontos naturais onde a água brotava e era coletada, ou contratar profissionais que comercializavam esse recurso essencial.
Em visita a Curitiba, Antônio identificou tanto o problema quanto o potencial da cidade para receber um sistema de encanamento, que se concretizou no chafariz da Praça Zacarias. Quem passa hoje pelo local e observa o antigo equipamento talvez não imagine sua relevância para a saúde e o bem-estar da Curitiba oitocentista.
O jornalista e pesquisador Diego Antonelli, autor de livros como Paraná: Uma História, explica como o projeto mudou a realidade da cidade.
“O chafariz se tornou ponto de abastecimento fundamental: facilitou o trabalho dos pipeiros, melhorou as condições sanitárias e garantiu água de melhor qualidade à população. Foi um marco de modernização e um dos primeiros passos rumo ao sistema de abastecimento público de Curitiba”, explicou.
Com o tempo e o desenvolvimento do encanamento na cidade, o chafariz foi desativado. Sua permanência na Praça hoje funciona como monumento à memória dos desafios superados e ao trabalho daqueles que se dedicaram a construir uma cidade melhor.
Pioneirismo além da engenharia
O impacto do trabalho e da visão vanguardista dos irmãos Rebouças vai além das obras. Foi André quem esboçou a ideia do Parque Nacional do Iguaçu, no Oeste paranaense, em um momento em que a defesa das florestas ainda não fazia parte do debate público. O parque só seria criado no século seguinte.
Os irmãos também revolucionaram o comércio da erva-mate ao propor novas embalagens, que atraíram consumidores internacionais. O produto, que antes era transportado em sacos de couro precários, passou a ser acondicionado em barricas de pinho idealizadas por eles. Para os rótulos dessas barricas, chegaram a Curitiba as primeiras prensas, marcando mais um avanço para a industrialização paranaense.
Causa abolicionista
Mas talvez a contribuição mais profunda dos Rebouças para o futuro do Brasil tenha sido seu compromisso com a causa abolicionista. Mesmo alcançando enorme reconhecimento, inclusive junto à corte, nunca deixaram de denunciar o regime escravocrata e apontar como o racismo atrasava o desenvolvimento do país.
André defendia a utilização de mão de obra assalariada, participou da fundação de sociedades contra a escravidão, lutou pela emancipação das pessoas escravizadas com inclusão social e econômica, defendendo acesso à educação e capacitação profissional. Os irmãos também destacavam como o preconceito racial impunha obstáculos adicionais às suas trajetórias, exigindo que demonstrassem domínio técnico para serem reconhecidos, como lembra Antonelli.
“Sua atuação no Paraná demonstra não apenas competência técnica excepcional, mas também a capacidade de romper barreiras raciais em uma sociedade excludente. Sua trajetória serve como importante referência histórica do potencial intelectual e profissional da população afro-brasileira”, destacou, ainda. “O legado dos Rebouças não apenas transformou a infraestrutura paranaense, eles desafiaram as hierarquias da sociedade da época”, concluiu.