Quase sempre quem pensa em arte submete-se, despercebidamente, à ideia de algo subjetivo, minimalista, criado apenas no campo da imaginação e com esforços físicos mínimos ou restritos. Esta versão da produção de arte, possivelmente, representa apenas a lógica mais popular. No entanto, quebra-se logo no acesso ao Ateliê de Esculturas e Fundição do Memorial Paranista, no Parque São Lourenço.
Ao cruzar as portas de vidro após o hall de entrada, o visitante mergulha em um universo particular e funcional da arte, de construções arquetípicas, iconográficas e semânticas, na concepção de peças e símbolos consagrados em bronze e outros materiais fundidos, em uma ativa, cronológica e verdadeira linha de produção artística.
O espaço remonta, claramente, a qualquer usina, chão de fábrica ou estação de trabalho em tempos modernos. Parte do complexo do Centro de Criatividade de Curitiba, esta “usina de artes” está equipada com fornos gigantes para derretimento de bronze, moldes para cera, máquinas de solda TIG, cabines de jato e um pórtico móvel para carregamento de obras de grandes dimensões.
Para a composição e concepção das obras de arte também são utilizados materiais diversos como bronze, aço, alumínio, argila, pedra, madeira, cimento, resina e também recicláveis. Estes materiais, com exceção do bronze, são relativamente baratos, com tempo de durabilidade considerável, quando feitas as obras fundidas.
Procedimentos técnicos
Os processos desenvolvidos no Ateliê Esculturas são altamente técnicos, delicados, meticulosos e perigosos. Envolvem métodos muito específicos e cuidadosos de modelagem (plastilina/argila), moldes (gesso/fibra de video/silicone), reprodução das matrizes em cera, incrustação (massa refratária), fundição (bronze) e o acabamento final (soldagem/jateamento/patinas/etc).
A fundição em bronze é o processo mais instigante. O metal é derretido para inserção do molde de gesso. O bronze derrete e vira uma espécie de lava vulcânica em chamas, com uma temperatura aproximada de 1.200 graus. A fundição traz uma beleza estranha e o fascínio das cores da lava do bronze.
Memória cultural
Existem ainda concepções importantes sobre os desígnios e atribuições do espaço. Em termos práticos e funcionais, toda a arte produzida por fundição, maquinário adequado para manuseio das obras em processo de criação e forno para queima de cerâmicas não é preparada no Ateliê de Esculturas apenas ou exclusivamente para preencher lacunas invisíveis do ego cultural de Curitiba e do Paraná.
A cadeia de produção funcional guarda a memória, promove o resgate cultural, preserva e faz o restauro permanente da história do município com a instalação e manutenção de obras de artes duradouras, resistentes e integradas, em plena harmonia às paisagens e às principais áreas urbanas da cidade.
Produção genuína
Além disso, dentre as atividades realizadas no Ateliê de Esculturas, destaca-se a produção de obras inéditas em todas as etapas, desde a concepção, finalização e instalação das peças em diferentes espaços urbanos e marcos da capital.
As ações envolvem restaurações e conservação das obras escultóricas que compõem o patrimônio artístico municipal. Também há um trabalho importante para preservar o espírito da arte e da cultura em meio às novas gerações com orientação e suporte técnico aos residentes e artistas interessados nos chamados processos escultóricos.
O guardião do ateliê
O acervo é protegido por um verdadeiro guardião templário do ateliê. Com 1,90 de altura, traços e perfil de ascendência greco-romana, bastante comunicativo e muito dedicado à produção de peças exclusivas, o artista plástico Rafael Sartori parece uma das esculturas criadas no espaço. Mas viva, em pleno movimento, ação, ativo, cheio do fôlego e em posição de sentinela para preservar a memória das personalidades históricas, a partir da produção de belas e imponentes obras de arte.
Veterinário por formação, Sartori trocou as pesquisas no Laboratório de Biologia Celular da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e uma expedição garantida à Antártida para se dedicar, com exclusividade, à arte e à produção artística escultural na capital. “Quando escolhi esse trabalho, foi uma decisão difícil, mas clara para mim, que moldou a minha vida e a minha história como artista”, disse.
Visão tridimensional
O escultor possui uma visão tridimensional, como ele mesmo define, na qual preserva um olhar detalhista e atento aos aspectos fisiológicos e estéticos de cada obra, voltado para o homem, a natureza e os animais.
“Eu consigo observar as formas, as pessoas e a natureza de modo tridimensional e em movimento. Isso, com certeza, facilita muito o meu trabalho de concepção para a escultura de cada obra”, explicou Sartori.
Sartori também é um especialista em restauro e moldes das obras históricas do artista paranaense João Turin, expostas e espalhadas pelas galerias e todas as áreas do Memorial Paranista.
Experiência aplicada
Antes de coordenar os trabalhos no Ateliê de Escultura do Memorial Paranista, Sartori atuou no Atelier e Fundição João Turin, da família Lago, entre outras experiências, por quase três anos. Tabalhou no restauro e nos moldes para reprodução das principais peças de Turin, precursor da escultura paranaense e do Movimento Paranista.
“Eu trouxe essa experiência e bagagem artística, comercial e de relações sociais, a partir também do trabalho com a reprodução das obras de João Turin, para nossas atividades aqui no Ateliê de Esculturas. Isto dá toda a referência para a produção das peças e para atender as demandas de restauro e preservação da arte em diferentes espaços urbanos e paisagens de Curitiba”, frisou.
Fundição pela arte
Ao lado de Sartori, uma equipe criativa, atenta e dedicada atua no Ateliê de Esculturas. O grupo mostra sintonia e uma espécie de fundição pelo amor e respeito à arte escultural, desde a concepção, execução e instalação de cada nova obra em Curitiba. A equipe é formada também pelo gestor Reinaldo Pilotto, o escultor Edson Lima, o auxiliar-administrativo Sadi Geremias e o auxiliar de fundição, Marcos Paulo.
No Ateliê de Esculturas foram feitas pela equipe, desde 2020, após a inauguração do espaço, aproximadamente dez restaurações, divididas, algumas delas, em três fundições diferentes. Dentre os trabalhos, destaque para obras como Baltazar Carrasco dos Reis e Índio Tindiquera, ambas do escultor Elvo Benito Damo, e Alfredo Andersen, por Erbo Stenzel.
Catálogo cultural
O catálogo inclui ainda outras dez produções inéditas com os relevos de D. Pedro I e do ex-governador do Paraná, Jaime Lerner, de autoria de Rafael Sartori.
No hall das grandes obras, também foi produzido pela equipe o monumento simbólico Árvore da Vida, também de autoria de Rafael Sartori, com a colaboração do escultor e parceiro Edson Lima.
Para dimensionar a qualidade e a dedicação dos artistas, cada escultura pesa em torno de 300 quilos de metal. Em média, são 120 dias para a entrega de cada obra, mas a equipe costuma finalizar antes desse prazo os trabalhos, além de manter conservada todas as obras nas principais praças, parques e espaços urbanos da cidade.
Obras entregues
O cronograma da equipe do Ateliê de Esculturas prevê a entrega de novas obras de arte em homenagem a personalidades marcantes da história da cidade. Ainda neste mês, será entregue à população a esculturas em bronze da engenheira Enedina Marques Alves.Também está, atualmente, em processo de criação, a releitura da obra Exílio de João Turin (1878-1949).
Ainda para este ano será concluído o relevo de Aristides de Souza Mendes, diplomata português que residiu na capital e foi responsável por dar salvo-conduto a 30 mil refugiados da 2º Guerra Mundial. Dentre os refugiados, 10 mil eram judeus.
O salvo-conduto foi garantido por Aristides de Sousa quando ele estava no posto diplomático representando Portugal na França.
Outra escultura, do ex-jogador de futebol Barcímio Sicupira, será concluída e entregue pelos artistas do ateliê em 2024.
Arte eterna
Sob a orientação de Sartori, a equipe realiza o restauro de um grande catálogo de obras de arte instaladas em diferentes áreas da cidade. O trabalho contempla fundição de várias peças de gesso em reprodução em bronze para preservação duradoura, conservação, cuidados sobre as obras danificadas e manutenção de peças. “Esse trabalho, muitas vezes, é feito direto nos locais e espaços, quando restauramos e também fazemos a limpeza das obras de arte”, disse o escultor e parceiro Edson Lima, desde os tempos da Atelier e Fundição João Turin.
Esculpir, na visão dos artistas, é um trabalho fundamental para preservar e eternizar a arte, a história e a memória de qualquer cultura. Isso porque, segundo Sartori e Lima, as esculturas sobrevivem e são remanescentes das intempéries do tempo e da história humana. “Principalmente, quando as obras são fundidas em bronze porque duram mais, resistem ao tempo e trazem com elas o próprio desenvolvimento de culturas e da sociedade”, disse Lima.
Poder do bronze
Por essa característica especifica de durabilidade, o bronze foi o principal material escolhido pelos artistas e é considerado prioritário em todos os trabalhos de restauração realizados no Ateliê de Esculturas e no Memorial Paranista.
“O bronze, sem dúvida, tem o melhor custo-benefício para fundir e para preservar as peças de arte. Ele é tão importante que até mesmo se destaca entre os materiais das medalhas olímpicas”, completou Sartori.