Sem qualquer tipo de vínculo em seus novos locais de morada, imigrantes e refugiados geralmente dependem quase que exclusivamente dos serviços públicos. Dominar o idioma e conseguir um abrigo são os primeiros desafios a serem vencidos, mas o acesso ao alimento é essencial para a sobrevivência com dignidade. Em Curitiba, cerca de 300 imigrantes e refugiados estão sendo atendidos pelo programa Armazém da Família, graças à flexibilização das exigências para cadastro adotada pela Secretaria Municipal do Abastecimento.
O atendimento a esse público é feito em parceria com a Assessoria de Direitos Humanos e a Fundação de Ação Social (FAS). Uma das barreiras identificadas foi a dificuldade de imigrantes e refugiados em apresentar os documentos exigidos para se cadastrar no Armazém da Família – programa que permite a famílias com renda familiar mensal de até 3,5 salários mínimos acesso a produtos industrializados com preços em média 30% menores do que no comércio convencional.
Assim, no lugar da carteira de identidade o programa passou a aceitar o protocolo do documento ou passaporte. No lugar dos habituais comprovantes de endereços (faturas de água ou luz), são aceitas as solicitações de encaminhamentos feitas pela FAS ou por organizações civis que prestam atendimento a essas famílias. Nesses casos, até a cópia de cadastro em uma Unidade de Saúde é válida.
“O acesso ao alimento é um dos principais objetivos da Secretaria do Abastecimento, e nesse caso isso ganha uma dimensão essencialmente humanitária”, afirma o secretário municipal do Abastecimento, Marcelo Munaretto. Ele lembra que o atendimento a imigrantes e refugiados é resultado da articulação entre dois programas da Prefeitura: o Curitiba Mais Nutrição e o Curitiba Mais Humana.
“Para o cadastro nos Armazéns, seguimos um protocolo de atendimento específico, com checagem dos dados, e o ajuste que fizemos na documentação não fere a portaria que regulamenta o serviço”, afirma a coordenadora de cadastros do Armazém da Família, Maria Imaculada Bernardes. De acordo com levantamento do setor, entre os usuários estrangeiros dos Armazéns há sírios, angolanos, haitianos, nigerianos e ucranianos.
Partilha de recursos e alimentos
Para a maioria desses usuários, o Armazém da Família representa um apoio essencial para garantir que terão alimentos à mesa. É o caso de um grupo de sírios composto por 12 pessoas, de quatro núcleos familiares distintos, que moram juntas em Curitiba há nove meses. No recomeço da vida, sem nenhum laço na capital, as memórias da guerra que deixaram para trás junto com os familiares e os amigos de uma vida inteira imprimem neles um sentimento de desconfiança, insegurança e medo. Por essa razão, seus nomes neste texto são fictícios.
O grupo, que partiu de Damasco, na Síria, compartilha não apenas a moradia, como também os recursos financeiros, as refeições e as aulas noturnas de Português.
“Se não fosse o isso (o Armazém), não sei como iríamos nos alimentar” , diz Mohammad, um dos moradores da casa. Dos 12 integrantes do grupo, apenas Sucena, de 35 anos, e Soraya, de 38 anos, conseguiram um emprego formal. Sucena trabalha para uma família e veio para o Brasil acompanhada do marido e dos filhos de 6 e 8 anos. Soraya conseguiu trabalho em um restaurante. Com ela também vieram dois filhos, de 7 e 10 anos, enquanto o marido permaneceu na Síria.
O marido de Sucena, Jamil, de 41 anos, tem experiência em marmoraria, mas como os outros homens do grupo está desempregado. Ambas ganham um salário mínimo, que se junta aos benefícios sociais públicos obtidos pelo grupo e que garantem o pagamento do aluguel do imóvel em que moram, no valor de R$ 1,4 mil, e dos gastos com energia, em torno de R$ 600,00.
O terceiro núcleo familiar é composto por Mohammad, de 46 anos, a esposa Zaíra, de 36 anos, e os filhos de 14 e 15 anos. Mohammad tem experiência na construção civil e quando consegue faz alguns “bicos”. Há ainda um jovem, que buscou refúgio para continuar os estudos e imigrou sem os pais.
Como nas três famílias há crianças pequenas, elas conseguiram o auxílio do Bolsa Família, em torno de R$ 250,00 para cada um dos três núcleos familiares. Mas, depois de pagar as contas, sobra muito pouco para as despesas mensais de tantas pessoas com alimentação e outros gastos. “Ainda não pagamos a água, mas vamos ter que começar a pagar”, comenta Mohammad.
Desde março, o grupo é atendido no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) Matriz. Além de receber orientação e apoio em outras questões, como o ingresso das crianças nas escolas e atendimento de saúde, as três famílias foram encaminhadas ao programa do Armazém da Família e incluídas no programa “Curitiba Sem Miséria”, desenvolvido pela FAS em parceria com o Abastecimento. O programa prevê crédito mensal de R$ 50,00 nos cartões do Armazém para gastos com gêneros alimentícios.
Ainda que somados todos os benefícios sociais e os salários de Sucena e Soraya, o grupo não chega ao teto máximo para a concessão do cadastro no Armazém e está dentro do critério básico para ingresso no programa. Para a concessão do benefício são aceitos cadastros de famílias com renda total de até 3,5 salários mínimos por mês – o equivalente hoje a R$ 2.758,00
Pelo protocolo normal do programa não seria possível cadastrar as três famílias, pois pelo fato de viverem juntas o sistema entendia como um único núcleo familiar. Adaptadas e compreendidas as especificidades, as famílias de Jamil, Mohammad e Soraya foram alternadamente cadastradas. “Compramos o estritamente necessário”, enfatiza Jamil.
Questionados sobre a escolha de Curitiba para viver, o jovem Ali responde: “Lá, na Síria, por meio de outras pessoas e parentes, ouvimos dizer que Curitiba era uma cidade boa para viver”.
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